Tratamentos podem causar danos
Publicado por 12 de Dezembro de 2017 em Carlos Henrique dos Santos Oliveira
Esta é a tradução para o Português do primeiro de uma série de 36 blogs, baseados em uma lista de ‘Conceitos Fundamentais’ developed by an Informed Health Choices project team. Leia a versão em Inglês aqui. Agradecimentos à Carlos Henrique dos Santos Oliveira e à Cochrane Brazil Rio de Janeiro pela tradução.
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Essa é uma das primeiras e mais importantes razões do por que precisamos testar tratamentos. Princípio de ética médica número 2: não causar dano.
Talvez pareça senso comum, mas através da história muitos exemplos mostraram que, sem uma abordagem baseada em evidências, indivíduos podem ser prejudicados ou até mesmo mortos por um tratamento. Poucos tratamentos efetivos são 100% seguros e as indústrias irão minimizar potenciais prejuízos e exagerar benefícios. Frequentemente, o tratamento não foi testado adequadamente ou os dados sobre os efeitos adversos não foram corretamente registrados ou apresentados.
Exemplo 1: Drogas antiarrítmicas em pacientes sofrendo infarto do miocárdio
Após um infarto algumas pessoas desenvolvem anormalidades do ritmo cardíaco – as arritmias. Aqueles que desenvolvem arritmias estão sob maior risco de morte do que aqueles que não as desenvolvem. Uma vez que existem drogas que inibem essas arritmias, parecia ser lógico que essas drogas também diminuiriam o risco de morte após um infarto.
As drogas foram testadas em ensaios clínicos, mas somente para descobrir se elas reduziam as anormalidades do ritmo cardíaco e não se elas reduziriam o risco de morte após um infarto do miocárdio. Quando a evidência acumulada dos ensaios foi sistematicamente revisada pela primeira vez em 1983, não havia evidência que essas drogas reduziam as taxas de mortalidade [1]. Na realidade, as drogas tinham exatamente o efeito oposto. Entretanto, elas continuaram a ser utilizadas – e continuaram a matar pessoas – por quase uma década.
No ápice de sua utilização, no final dos anos 80, apenas nos EUA, a estimativa era que elas haviam causado dezenas de milhares de mortes prematuras todo ano. Na realidade, elas estavam matando mais americanos a cada ano do que foram mortos em ação durante toda guerra do Vietnã [2].
Este exemplo ilustra como analisar o desfecho errado pode ser enganoso.
Exemplo 2. Dr. Spock
O aconselhamento também pode ser letal. Muitas pessoas já ouviram falar do Dr. Benjamin Spock, especialista em cuidado infantil, cujo best-seller “Cuidado do Bebê e da Criança” se tornou uma bíblia para pais e profissionais, especialmente nos EUA e no Reino Unido, por várias décadas. Entretanto, ao dar um dos seus bem-intencionados aconselhamentos, Dr. Spock interpretou as coisas de forma terrivelmente errada.
Com uma sugestão aparentemente lógica, ele falou: “Há duas desvantagens de um bebê dormir de costas. Se ele vomitar é mais provável engasgar no vômito. Ele também tende a manter sua cabeça virada para o mesmo lado… isso pode achatar um lado da cabeça… eu penso que é preferível acostumar o bebê a dormir com a barriga para baixo desde o início”.
Essa recomendação tornou-se uma prática comum, apesar de não ter sida avaliada rigorosamente, e estima-se que tenha causado dezenas de milhares de mortes súbitas [3].
Quando evidências claras para esses efeitos danosos surgiram, a prática de deixar o bebê dormir de bruços foi abandonada e o número de mortes súbitas começou a cair drasticamente.
Isso mostra como a opinião do especialista não está sempre correta. (Isso será discutido posteriormente em uma postagem dessa série. Conceito chave 1.6: opinião do especialista nem sempre está correta).
Exemplo 3. Talidomida (Desculpe, mas é muito importante)
Talidomida é um exemplo especialmente arrepiante de um novo tratamento médico que causou mais dano do que benefício porque não foi testada para seu propósito. Esse comprimido para dormir foi introduzido no final dos anos 50 como uma alternativa aparentemente mais segura que os barbitúricos, que eram regularmente prescritos na época. Ao contrário dos barbitúricos, overdoses de talidomida não levavam ao coma. A Talidomida era recomendada especialmente para gestantes, nas quais era utilizada para diminuir as náuseas matinais.
Então, no começo dos anos 60 os obstetras começaram a notar um leve acréscimo nos casos de malformações graves nos braços e pernas em recém-nascidos. Essa condição, anteriormente rara, resulta em membros tão curtos que as mãos e os pés parecem emergir diretamente do corpo.
Os médicos na Alemanha e na Austrália depois ligaram essas malformações infantis com o fato das mães terem sido medicadas com Talidomida no início da gestação [4], o que resultou em indenizações que somavam milhões de libras.
A tragédia da talidomida atordoou os médicos, a indústria farmacêutica e os pacientes, e levou a um processo de inspeção mundial do desenvolvimento de medicamentos [5].
Exemplos como esse são mais numerosos do que se imagina e todos eles resultam de médicos, pesquisadores e companhias farmacêuticas não testarem o tratamento adequadamente – resultando em danos ou morte de milhares de pessoas e despesas desnecessárias de centenas de organizações de saúde.
Dessa forma, precisamos da evidência para sabermos se uma prática causa mais dano do que benefício e sempre devemos considerar a possibilidade de que tratamentos possam causar dano.