Viés de financiamento da indústria

Publicado por 1 de Abril de 2022 em

Tutoriais e Fundamentos

Definição 

Na epidemiologia clínica, viés é definido como um erro na concepção e ou delineamento de um estudo com tendência a gerar resultados ou conclusões que se afastem sistematicamente da verdade, ou seja, viés é um erro sistemático. 

A indústria farmacêutica financia inúmeros estudos e exerce importante papel no desenvolvimento de novas tecnologias em saúde. Atualmente, os gastos em pesquisas médicas pela indústria americana superam os investimentos do National Institute of Health. E, assim como em qualquer outro cenário comercial, existem interesses financeiros. Em um estudo científico, a tendência de apoio a esses interesses por mecanismos de distorção configura o viés de financiamento da indústria, também conhecido como viés de patrocínio, viés de desfecho financiado, viés de publicação de financiamento e efeito de financiamento.

 

Como ocorre o viés de financiamento da indústria 

A fim de atender aos interesses do seu patrocinador, o desenho, a condução, a mensuração e a redação de um manuscrito podem ser distorcidos de modo a culminar em resultados convenientes a ele. Isso pode ocorrer, por exemplo, por meio das seguintes escolhas: 

    • seleção de uma população não representativa 
    • administração do medicamento comparador em dose não ideal, em testes comparativos. 
    • uso de métodos controversos na análise de dados. 
    • relato apenas dos resultados estatisticamente significativos. 
    • publicação parcial de resultados, incluindo somente aqueles favoráveis à intervenção. 

Exemplo de viés de financiamento da indústria 

Um exemplo de viés de patrocínio está vinculado à Coca-Cola. Em 2015, jornalistas investigativos analisaram mais de 18 mil páginas de e-mails trocados entre a empresa e pesquisadores da Universidade de West Virginia e da Universidade do Colorado, principais instituições da Global Energy Balance Network (GEBN), organização que conduzia pesquisas sobre obesidade financiadas pela Coca-Cola. Foi constatado que a Coca-Cola buscou minimizar a percepção pública do impacto do consumo de bebidas açucaradas (como refrigerantes) sobre doenças, alegando, por exemplo, que o sedentarismo é mais importante na etiologia da obesidade do que a dieta. Após o escândalo gerado pela descoberta deste conflito, a GEBN foi fechada. 

 

Consequências do viés de financiamento da indústria 

Devido à magnitude dos investimentos em pesquisas clínicas pela indústria, os estudos financiados têm importante contribuição no conjunto do conhecimento e, portanto, grande influência na tomada de decisão em saúde. Assim, os vieses desses estudos são refletidos nos cuidados aos pacientes.  

Revisões sistemáticas já relataram que em estudos financiados pela indústria existe associação com achados favoráveis ao produto do patrocinador. Sabe-se que resultados e conclusões contrários à intervenção financiada podem ser encarados como riscos financeiros à indústria.  

Dessa forma, a recomendação de medicamentos ou intervenções, por vezes, mais caros e com eficácia semelhante (ou inferior) ao cuidado atual, por exemplo, torna-se recorrente e pode levar a adoção de condutas enviesadas, com consequentes riscos aos pacientes.  

 

Como prevenir ou minimizar o viés de financiamento da indústria. 

O Quadro 1 apresenta algumas estratégias que devem ser adotadas pelas diferentes partes interessadas para prevenir ou minimizar o viés de financiamento da indústria. 

Quadro 1. Estratégias para prevenir ou minimizar o viés de financiamento da indústria.

Partes interessada  Estratégia 
Periódico científicos 
  • É direito do leitor saber que por trás do artigo há relações que aumentam a probabilidade de, ainda que inconscientemente, o estudo não ter sido guiado apenas por interesses científicos.  
  • Por isso, periódicos científicos signatários do International Commitee of Medical Editors (ICMJE, http://www.icmje.org/) e do Committee on Publication Ethics (COPE. https://publicationethics.org/) adotam recomendações como: 
  • exigência de registro prospetivo do protocolo do estudo relatado; 
  • declarações de conflitos de interesse e de financiamento na publicação; 
  • detalhamento do papel do patrocinador no desenho, na condução e na publicação do estudo. 

 

Leitores, usuário das informações em saúde como estudantes, profissionais da saúde e gestores 
  • Adotar a prática baseada em evidências para a tomada de decisão. 
  • Incorporar na rotina a leitura crítica dos artigos que identifique distorções.  
  • Conhecer os delineamentos de estudos, os métodos apropriados para cada um deles, as medidas de associação, as limitações, a presença de financiamento e de conflitos de interesse.  
  • Receber com cautela e com visão crítica os materiais distribuídos e apresentados pelas indústrias em congressos da saúde. 

 

Pesquisadores 
  • Acordar antecipadamente com o patrocinador algumas medidas para prevenir o viés de financiamento da indústria e assim manter a autonomia sobre o planejamento, a condução, a análise e o relato do estudo.  
  • Avaliar cuidadosamente os contratos de modo a prevenir interferências do patrocinador no projeto.  
  • Ainda com todas estas medidas, como a pergunta de interesse e as hipóteses da pesquisa são definidas previamente pelo patrocinador, elas podem moldar resultados positivos. 

 

Instituições de apoio à pesquisa 
  • Aumentar o financiamento para pesquisas independentes; 
  • Criar um fundo geral de pesquisa no qual empresas contribuam sem que patrocinem um estudo específico. 
  • Estimular o desenvolvimento de ensaios clínicos randomizados (ECR) com intuitos científicos e não comerciais, que comparem a intervenção testada com a melhor opção disponível no mercado e em doses equivalentes. 
  • Exigir que protocolos de estudos financiados sejam disponibilizados em bases de registro de estudos clínicos (como ClinicalTrials.gov ou International Clinical Trials Registry Platform, por exemplo) e seus resultados publicados de modo integral e transparente. 

 

 

Conclusão 

O provérbio “Quando a esmola é demais o santo desconfia” carrega consigo a seguinte mensagem: devemos nos atentar ao que parece ser muito bom ou generoso, visto que pode haver um interesse oculto. Tal sabedoria popular pode ser aplicada em vários contextos, desde a leitura de notícias com manchetes sensacionalistas até na análise de estudos científicos devido à existência de vieses, dentre eles o viés de financiamento da indústria. 

 

Autoras: Débora de Souza Pazini e Rachel Campos Ornelas, alunas de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Campus Governador Valadares. 

Como citar: Pazini DS, Ornelas RC. Viés de financiamento da indústria. Estudantes para Melhores Evidências. Cochrane. Disponível em: [adicionar link da página da web]. Acessado em: [adicionar dia, mês e ano de acesso]. 

 

Referências:
 

  1. Robert H. Fletcher, Suzanne W. Fletcher, Grant S. Fletcher. Epidemiologia Clínica: Elementos Essenciais 5a edição. Porto Alegre: Artmed; 2014.  
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  3. Holman, B, Elliott, KC. The promise and perils of industry‐funded science. Philosophy Compass. 2018; 13:e12544. Disponível em: https://doi.org/10.1111/phc3.12544. Acessado em 26 de março de 2022. 
  4. Catalogue of Bias Collaboration, Holman B, Bero L, & Mintzes B. Industry sponsorship bias [Internet]. Catalog of Bias. 2019. Disponível em:: https://catalogofbias.org/biases/industry-sponsorship-bias/ Acessado em 26 de março de 2022. 
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  6. O’Connor A. Coca-Cola funds scientists who shift blame for obesity away from bad diets. 2015 Aug 9. Disponível em: https://well.blogs.nytimes.com/2015/08/09/coca-cola-funds-scientists-who-shift-blame-for-obesity-away-from-bad-diets. Acessado em 26 de março de 2022. 
  7. Huehnergarth NF. Emails reveal how Coca-Cola shaped the anti-obesity Global Energy Balance Network [Internet]. Forbes. 2015. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/nancyhuehnergarth/2015/11/24/emails-reveal-how-coca-cola-shaped-the-anti-obesity-global-energy-balance-network/. Acessado em 26 de março de 2022. 

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